52. Uma Breve História do Unix — Das Torres da Bell Labs ao Coração da Internet

Introdução

Poucas criações da engenharia de software tiveram impacto tão profundo e duradouro quanto o Unix. Nascido nas entranhas da Bell Labs, o Unix não só moldou décadas de desenvolvimento tecnológico, como também plantou as sementes do que hoje conhecemos como cultura hacker, open source e até da própria internet.

Este artigo busca traçar uma linha histórica rigorosa e cronológica do Unix, suas versões, suas guerras comerciais e sua herança viva — que, direta ou indiretamente, está rodando em seu smartphone, no roteador da sua casa, nos servidores da nuvem e, muito provavelmente, no servidor que está entregando esta página.

1. As Origens — Do Multics ao Unics

Nos anos 1960, três gigantes — Massachusetts Institute of Technology (MIT), General Electric (GE) e Bell Labs (AT&T) — trabalharam no ambicioso projeto Multics (Multiplexed Information and Computing Service, trad. “Serviço de Informação e Computação Multiplexado”), uma tentativa de criar um sistema operacional de tempo compartilhado avançado. O projeto, no entanto, se tornou excessivamente complexo e pesado1.

Em 1969, a Bell Labs abandona o Multics. Desiludido, mas não derrotado, Ken Thompson — com apoio de Dennis Ritchie, Douglas McIlroy e outros — começa a desenvolver um sistema operacional simplificado, inicialmente para um minúsculo computador PDP-7.

O nome inicial, “Unics”, era uma brincadeira com “Multics”, sugerindo que era uma versão simplificada — “UNIplexed Information and Computing Service2. Rapidamente, o nome virou Unix, e assim começava uma revolução.

2. A Era das Research Versions (1969–1979)

As primeiras versões do Unix eram internas à Bell Labs, evoluindo de forma experimental:

  • Unix Version 1 (1971): rodava no PDP-11, escrito em Assembly.
  • Unix V2 (1972): melhorias incrementais.
  • Unix V3 (1973): começa a transição para a linguagem C.
  • Unix V4 (1973): o sistema já é predominantemente escrito em C, tornando-se portável — marco divisor da história3.
  • Unix V5 (1974): começa a ser licenciado para universidades sob uma licença acadêmica barata, porém restritiva.
  • Unix V6 (1975): o primeiro Unix amplamente distribuído, sobretudo no meio acadêmico. Chega com código-fonte aberto (para os padrões da época), mas sob licença que permitia modificação apenas para fins de pesquisa e não comerciais4.

Foi a partir do Unix V6 que surgem os primeiros forks significativos, incluindo os projetos que dariam origem ao BSD na Universidade de Berkeley5.

Em 1979, a Bell Labs lança o Unix V7, considerado o “Last True Unix6. Incluía ferramentas lendárias como sh, awk, sed e grep.

3. Unix Vende Seu Nome — A Era Comercial (1980–1990)

Na década de 1980, a AT&T, após a quebra do seu monopólio de telecomunicações pelo governo dos EUA em 19847, passa a explorar comercialmente o Unix.

Aqui nasce uma nova linha de desenvolvimento:

  • System III (1982): primeira versão comercial, era uma consolidação de várias linhas internas da Bell Labs: Research Unix V7, PWB/UNIX (Programmer’s Workbench) e CB-UNIX (uma versão interna da Bell Labs para telefonia)8.
  • System V (1983): a nomenclatura “V” vem de “Five”, indicando sua origem na quinta geração interna da linha corporativa (ou marketing), não diretamente do Research V59.

O livro “A Quarter Century of Unix” de Peter H. Salus, referência absoluta no assunto, confirma categoricamente que nunca existiram System I, II ou IV.10

As versões subsequentes são:

  • System V Release 2 (1984)
  • System V Release 3 (1987)
  • System V Release 4 (1989) — tentativa de unificar BSD, Xenix e System V num só sistema11.

Em 1989 a AT&T cria a Unix System Laboratories (USL), uma subsidiária separada e distinta da AT&T responsável pelo desenvolvimento, marketing e licenciamento do software UNIX System V12.

Ao mesmo tempo, a Universidade de Berkeley cria a linhagem BSD (Berkeley Software Distribution), que introduz avanços técnicos como a pilha TCP/IP (que fundou as bases da internet), o editor vi e sistemas de arquivos avançados13.

4. Berkeley Software Distribution — A Rebelião Acadêmica

O Unix V6, lançado em 1975, abriu caminho para que universidades, sobretudo a Universidade da Califórnia, Berkeley, começassem a fazer modificações próprias no sistema. Foi lá que surge a linhagem BSD (Berkeley Software Distribution).

Tudo começa em 1977, quando o professor Bob Fabry, com financiamento da DARPA, contrata estudantes como Bill Joy (futuro cofundador da Sun Microsystems) para expandir o Unix com recursos voltados a redes e desempenho14.

A evolução das versões BSD é a seguinte15 16:

  • 1BSD (1977): não era um sistema operacional completo. Era um conjunto de melhorias para o Unix V6, incluindo ferramentas como o editor ex (que depois evolui para vi).
  • 2BSD (1978): estende as melhorias para o V7, com mais utilitários e comandos aprimorados, muito focado nos sistemas PDP-11.
  • 3BSD (1979): primeiro BSD baseado na arquitetura de 32 bits (VAX), deixando de ser só um suplemento e se tornando um sistema operacional completo.
  • 4BSD (1980): melhorias significativas de desempenho e memória virtual.
  • 4.1BSD (1981): correções e otimizações do kernel, além de maior estabilidade.
  • 4.2BSD (1983): marco fundamental, introduz a pilha TCP/IP, sockets, vi, o novo sistema de arquivos UFS e suporte aprimorado a redes — tecnologias que literalmente colocaram a Internet para funcionar.
  • 4.3BSD (1986): aprimoramentos de performance e estabilidade, consolida o modelo TCP/IP.
  • 4.4BSD (1993): último BSD completo com código da AT&T.
  • 4.4BSD-Lite (1994): removeu partes do código Unix proprietário e servia de base para sistemas completamente livres.
  • 4.4BSD-Lite2 (1995): foi a última release oficial da Universidade de Berkeley. Ele é uma atualização menor do 4.4BSD-Lite (1994), trazendo basicamente correções de bugs, melhorias de portabilidade e limpeza de código, sem mudanças drásticas na arquitetura. O 4.4BSD-Lite2 serviu como a base definitiva e legalmente limpa para todos os BSDs modernos: FreeBSD, NetBSD, OpenBSD.

Nota: a convenção histórica adotada na literatura para a nomenclatura é “<versão>BSD” e não “BSD <versão>”, refletindo que BSD é uma distribuição específica do Unix, não uma linhagem isolada. Isso aparece nos próprios manuais, nos headers de código (/usr/include), nas release notes e nos papers técnicos da época.

As Releases Net/1 e Net/2

Diante das disputas legais com a AT&T, Berkeley começa a modularizar e liberar partes do BSD sem código proprietário17:

  • Networking Release 1 (Net/1) (1989): primeira liberação pública de partes do BSD contendo a pilha TCP/IP e utilitários de rede, totalmente livre de código AT&T.
  • Networking Release 2 (Net/2) (1991): versão quase completa do BSD, mas sem o kernel proprietário da AT&T. Foi com base no Net/2 que surgem os projetos FreeBSD, NetBSD e a distribuição comercial da BSDi (Berkeley Software Design Inc.).

BSDi e a Tempestade Judicial

A BSDi não pertencia à Universidade, mas foi fundada por desenvolvedores egressos do próprio projeto BSD, oferecendo uma versão comercial baseada no Net/2 chamada BSD/386, voltada para hardware Intel. Ele também incluía um kernel proprietário desenvolvido pela BSDi para preencher as lacunas deixadas pela remoção do código da AT&T.

Isso enfureceu a AT&T que, via USL, processou a BSDi em uma batalha legal que durou até 199418. A Universidade de Berkeley não foi processada, mas foi envolvida por pressão19 20.

Um acordo judicial resultou na revisão do código e à produção do 4.4BSD-Lite, oficialmente livre de qualquer vestígio do código da AT&T, encerrando de vez as amarras legais e permitindo que os BSDs modernos fossem 100% open source21 22.

Empresas que adotaram BSD incluem DEC, Sony, Sequent, Sun Microsystems (antes do Solaris), além de serem amplamente utilizados em roteadores, firewalls e appliances de rede até hoje23.

5. A Guerra dos Unix (1990–2000)

Os anos 90 são o palco da chamada “Unix Wars”, um conflito comercial e tecnológico entre diferentes fornecedores:

  • De um lado, os defensores do System V, como AT&T, IBM (AIX), HP (HP-UX) e SCO.
  • De outro, a linhagem BSD, abraçada por empresas como Sun Microsystems, DEC, e comunidades acadêmicas.

A tentativa de padronização surge com o POSIX, que define uma API comum, embora incompatibilidades continuem por anos24.

Em 1993, a AT&T vende os direitos do Unix para a Novell, que depois repassa para a SCO Group, protagonista da infame guerra judicial contra o Linux nos anos 200025.

Paralelamente, em 1991, surge o Linux, criado por Linus Torvalds — tecnicamente um clone do Unix, inspirado em Minix, mas com uma licença aberta e permissiva, a GPL26. Embora não carregue código Unix, é compatível com sua API e filosofia.

6. Declínio Comercial e Imortalidade Tecnológica (2000–2025)

Nos anos 2000, o Unix tradicional começa a perder espaço para o Linux, que rapidamente domina servidores, supercomputadores, dispositivos móveis (via Android) e até roteadores.

Vários sistemas Unix comerciais entram em decadência:

  • Solaris (Sun → Oracle) — hoje mantido, mas restrito.
  • HP-UX — obsoleto, mas com contratos de suporte de longo prazo.
  • AIX — ainda sobrevive em ambientes IBM de missão crítica.

Os BSDs, por sua vez, se especializam:

  • FreeBSD domina servidores, storage27 e redes.
  • OpenBSD vira referência mundial em segurança.
  • NetBSD se torna símbolo de portabilidade, rodando de torradeiras a supercomputadores28.

7. E a Bell Labs? Virou Nokia

A Bell Labs, berço do Unix, da linguagem C, dos transistores e até da teoria da informação, sofreu seu próprio destino corporativo:

  • 1996: A AT&T faz um spin-off, criando a Lucent Technologies, levando a Bell Labs junto.
  • 2006: Lucent se funde com a francesa Alcatel, formando a Alcatel-Lucent.
  • 2016: A Nokia compra a Alcatel-Lucent, e a Bell Labs passa a ser o laboratório de pesquisa avançada da Nokia29.

Conclusão

O Unix não é só um sistema operacional. É uma filosofia. Uma maneira de pensar software modular, portátil, robusto e elegante.

Se hoje você executa comandos como ls, grep, cat ou cd no terminal, saiba que está falando diretamente a língua dos engenheiros que, em 1969, num laboratório de telefonia, decidiram que podiam fazer melhor do que o Multics.

O Unix nunca morreu. Ele se espalhou.


Notas e Referências


  1. Salus, Peter H. A Quarter Century of Unix. Addison-Wesley, 1994.↩︎

  2. Ritchie, Dennis M. “The Evolution of the Unix Time-sharing System.” Bell System Technical Journal, 1979.↩︎

  3. Kernighan, Brian W.; Ritchie, Dennis M. The C Programming Language. Prentice Hall, 1978.↩︎

  4. Lions, John. A Commentary on the Unix Operating System, 1977 — livro lendário baseado no código-fonte do Unix V6.↩︎

  5. McKusick, Marshall Kirk et al. The Design and Implementation of the 4.4BSD Operating System. Addison-Wesley, 1996.↩︎

  6. AT&T Divestiture — The New York Times, 1984.↩︎

  7. Libes, Don. Life With Unix. Prentice Hall, 1989.↩︎

  8. Ritchie, Dennis M.; Thompson, Ken. “The UNIX Time-Sharing System.” Communications of the ACM, July 1974.↩︎

  9. Quarterman, John S. The Matrix: Computer Networks and Conferencing Systems Worldwide, 1990.↩︎

  10. AT&T Renames Unix Software Unix System Laboratories. Tech-Insider.org, 25 de junho de 1990. Disponível em: https://www.tech-insider.org/unix/research/1990/0625.html. Acesso em: junho de 2025.↩︎

  11. McKusick, Marshall Kirk. Entrevistas diversas, incluindo BSD Now Podcast, 2014.↩︎

  12. IEEE. POSIX.1-1990 — Portable Operating System Interface (POSIX) Part 1: System Application Program Interface (API).↩︎

  13. “SCO Sues IBM.” CNET News, 2003.↩︎

  14. Torvalds, Linus. “Re: What would you like to see most in minix?” — Postagem histórica de 25 de agosto de 1991 no comp.os.minix.↩︎

  15. Sistemas especializados de armazenamento de dados corporativos, como: NAS (Network Attached Storage), SAN (Storage Area Network), appliances de backup, replicação e arquivamento, sistemas de arquivos distribuídos e escaláveis etc.↩︎

  16. https://www.netbsd.org/ports — Página oficial dos ports do NetBSD.↩︎

  17. “Nokia Completes Acquisition of Alcatel-Lucent.” Nokia Press Release, 2016.↩︎

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